Humberto Silva de Lima
Quebra de paradigmas. Talvez essa
seja a ideia que possa resumir a peça A
Alma Imoral (90 minutos de duração, aproximadamente), uma leitura da atriz Clarice
Niskier (2014) sobre a obra homônima do rabino Nilton Bonder (2005). A Alma imoral está em cartaz desde 2006,
e isso comprova o fato de que, embora predomine atualmente um gosto massivo
pelas comédias ou musicais teatrais, ainda há espaço fértil para o teatro de
cunho filosófico.
Em uma das edições do programa “Sem
Censura”, transmitido pela TV Brasil, o tema discutido era religião, e, em uma
das inquirições, Clarice Niskier, convidada a debater o tema, disse que era
judia-budista. No decorrer do programa, a produção recebeu um fax de uma
telespectadora judia que contestava a impossibilidade de alguém ser budista e
ser também judeu, e, com isso, o rabino Nilton Bonder, que também participava
da discussão do tema naquele momento, defendeu a atriz e, ao final do programa,
presenteou-a com o livro A Alma Imoral. Clarice
se apropriou da obra e decidiu adaptá-la em um monólogo.
Clarice Niskier, em estado de nudez
real e, ao mesmo tempo, simbólica, apresenta no monólogo uma relação dialética
entre tradição e traição – as tradições trazem o poder das instruções do
passado, e as traições trazem o poder das instruções do futuro –, no sentido de
não existe tradição sem traição, como também não existe traição sem tradição.
Se tomarmos os escritos de Alasdair MacIntyre, filósofo escocês e Professor da
Universidade de Notre Dame, defensor da ideia de que vivemos atualmente numa
grave desordem moral e de que precisamos, para revertermos essa situação,
voltar aos valores tradicionais propostos por Aristóteles em Ética a Nicômaco (séc. IV a.C.), podemos
observar, especificamente em diálogo com a obra Depois da Virtude (2001), que essa sociedade moralmente desordenada
parece ceder aos desígnios da alma imoral, visto que a função dessa alma “pode
levar a grandes riscos, é parte do ato de ‘devoção’ à vida” (BONDER, 2005:49).
O que o pensamento de MacIntyre talvez não contemple é o fato de a tradição,
que é o compromisso com o passado em meio às demandas do futuro, ser também um
campo fértil para a traição. É essa traição que pode ser o ponto máximo da obra
de Nilton Bonder e da representação dessa obra por Clarice Niskier, confirmando
a ideia de que não há nudez na natureza.
Se
a preservação da lei é obtida com o rompimento dela e a ab-rogação da mesma
(BONDER, 2005), podemos entender com isso que o questionamento de valores a nós
impostos faz parte da continuidade do homem como ser histórico, caso dialoguemos esse questionamento aos preceitos
epistemológicos da Análise do Discurso de linha francesa (PÊCHEUX, 2009; MAINGUENEAU,
2000; CHARAUDEAU, 1983), que se reportam à linguagem como ação, trabalho
simbólico, transformação, que se dá com a traição no decorrer das tradições em
prol do futuro. A peça representada por Clarice Niskier, arte formada por um
encadeamento de ideias e conceitos, apresenta um tipo de linguagem que não é
mero instrumento de comunicação, mas sim um ir e vir históricos em prol da
preservação do homem como ser histórico, mesmo que isso faça com que a alma
desnuda, em conflito com o corpo vestido – isso vem de encontro com as ideias
afirmadas por dogmas religiosos, em que a carne (o corpo, erroneamente
considerado imoral) milita contra a alma (considerada erroneamente moral) –,
venha a transgredir, desobedecer, quebrar paradigmas para que a lei seja
cumprida, e isso se verifica no episódio das filhas de Lot – “Nosso pai está velho, e na terra não ficou homem
algum a que nos possamos unir, conforme o uso de toda a terra. Embriaguemos
nosso pai com vinho, e durmamos com ele; deste modo conceberemos filhos de
nosso pai” (BONDER, 2005:73) – e no conceito da terra
prometida, “que não sacrifica os filhos e que tem como parte da tradição o
rompimento” (NISKIER, 2014).
Em
um dado momento do monólogo, a atriz interage com o público: alguém diz uma
palavra dita nas falas e, então, Clarice repete o trecho em que se encontra a mesma.
Talvez a parte mais impressionante repetida pela atriz seja o trecho em que se
encontra o verbo enxergar: “aquele que não enxerga não sabe o que não vê,
porque quando sabe o que não vê de alguma forma já está vendo; já o que vê
pensa que tudo o que vê é o que é, porque quando sabe que tudo o que vê não é
tudo o que é, de alguma forma já está vendo o que não vê” (NISKIER, 2014).
Enxergar o que não era visto confirma o quebrar de paradigmas e o revisar de
pré-conceitos.
Mais
tarde, Nilton Bonder (2011) publicou Segundas
Intenções, que é, na opinião do rabino, um reverso da A Alma Imoral; Segundas Intenções nos diz que não se
deve pautar o comportamento apenas na transgressão, porque há o lado da
preservação porque há algum motivo de o ser humano estar vestido. Pela linha da
Análise do Discurso, são os “silêncios” do ser humano que são ditos e, em
alguma situação da vida, são silenciados. Seria um grande desafio para Clarice
Niskier adaptar essa obra para o teatro e mostrar a inexistência da
transparência da linguagem e, consequentemente, da transparência do ser humano, que é um ser histórico espontâneo
e, ao mesmo tempo, censor.
Referências
bibliográficas
ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Brasília: UnB, 1998.
BONDER, Nilton. A Alma Imoral. São Paulo: Rocco Digital, 2005. Acesso em 20 de
abril de 2014.
----. Segundas Intenções. São Paulo: Rocco, 2011.
CHARAUDEAU, Patrick. Langage et discours. Paris: Hachette,
1983
MACINTYRE, Alasdair. Depois da virtude. São Paulo: EDUSC, 2001.
MAINGUENEAU, Dominique. Análise de textos de comunicação. São
Paulo: Cortez, 2000.
NISKIER, Clarice. A Alma Imoral. Peça baseada na obra homônima de Nilton Bonder, Teatro Glauce Rocha, Rio de Janeiro, 18 de
abril de 2014.
PÊCHEUX, Michel. Semântica e discurso. São Paulo: Unicamp, 2009.