quarta-feira, 30 de abril de 2014

Resenha sobre a peça teatral "A alma imoral"



Imagem do Programa 3 a 1 - TV Brasil

Humberto Silva de Lima

Quebra de paradigmas. Talvez essa seja a ideia que possa resumir a peça A Alma Imoral (90 minutos de duração, aproximadamente), uma leitura da atriz Clarice Niskier (2014) sobre a obra homônima do rabino Nilton Bonder (2005). A Alma imoral está em cartaz desde 2006, e isso comprova o fato de que, embora predomine atualmente um gosto massivo pelas comédias ou musicais teatrais, ainda há espaço fértil para o teatro de cunho filosófico.

Em uma das edições do programa “Sem Censura”, transmitido pela TV Brasil, o tema discutido era religião, e, em uma das inquirições, Clarice Niskier, convidada a debater o tema, disse que era judia-budista. No decorrer do programa, a produção recebeu um fax de uma telespectadora judia que contestava a impossibilidade de alguém ser budista e ser também judeu, e, com isso, o rabino Nilton Bonder, que também participava da discussão do tema naquele momento, defendeu a atriz e, ao final do programa, presenteou-a com o livro A Alma Imoral. Clarice se apropriou da obra e decidiu adaptá-la em um monólogo.

Clarice Niskier, em estado de nudez real e, ao mesmo tempo, simbólica, apresenta no monólogo uma relação dialética entre tradição e traição – as tradições trazem o poder das instruções do passado, e as traições trazem o poder das instruções do futuro –, no sentido de não existe tradição sem traição, como também não existe traição sem tradição. Se tomarmos os escritos de Alasdair MacIntyre, filósofo escocês e Professor da Universidade de Notre Dame, defensor da ideia de que vivemos atualmente numa grave desordem moral e de que precisamos, para revertermos essa situação, voltar aos valores tradicionais propostos por Aristóteles em Ética a Nicômaco (séc. IV a.C.), podemos observar, especificamente em diálogo com a obra Depois da Virtude (2001), que essa sociedade moralmente desordenada parece ceder aos desígnios da alma imoral, visto que a função dessa alma “pode levar a grandes riscos, é parte do ato de ‘devoção’ à vida” (BONDER, 2005:49). O que o pensamento de MacIntyre talvez não contemple é o fato de a tradição, que é o compromisso com o passado em meio às demandas do futuro, ser também um campo fértil para a traição. É essa traição que pode ser o ponto máximo da obra de Nilton Bonder e da representação dessa obra por Clarice Niskier, confirmando a ideia de que não há nudez na natureza.

Se a preservação da lei é obtida com o rompimento dela e a ab-rogação da mesma (BONDER, 2005), podemos entender com isso que o questionamento de valores a nós impostos faz parte da continuidade do homem como ser histórico, caso  dialoguemos esse questionamento aos preceitos epistemológicos da Análise do Discurso de linha francesa (PÊCHEUX, 2009; MAINGUENEAU, 2000; CHARAUDEAU, 1983), que se reportam à linguagem como ação, trabalho simbólico, transformação, que se dá com a traição no decorrer das tradições em prol do futuro. A peça representada por Clarice Niskier, arte formada por um encadeamento de ideias e conceitos, apresenta um tipo de linguagem que não é mero instrumento de comunicação, mas sim um ir e vir históricos em prol da preservação do homem como ser histórico, mesmo que isso faça com que a alma desnuda, em conflito com o corpo vestido – isso vem de encontro com as ideias afirmadas por dogmas religiosos, em que a carne (o corpo, erroneamente considerado imoral) milita contra a alma (considerada erroneamente moral) –, venha a transgredir, desobedecer, quebrar paradigmas para que a lei seja cumprida, e isso se verifica no episódio das filhas de Lot – “Nosso pai está velho, e na terra não ficou homem algum a que nos possamos unir, conforme o uso de toda a terra. Embriaguemos nosso pai com vinho, e durmamos com ele; deste modo conceberemos filhos de nosso pai” (BONDER, 2005:73) – e no conceito da terra prometida, “que não sacrifica os filhos e que tem como parte da tradição o rompimento” (NISKIER, 2014).

Em um dado momento do monólogo, a atriz interage com o público: alguém diz uma palavra dita nas falas e, então, Clarice repete o trecho em que se encontra a mesma. Talvez a parte mais impressionante repetida pela atriz seja o trecho em que se encontra o verbo enxergar: “aquele que não enxerga não sabe o que não vê, porque quando sabe o que não vê de alguma forma já está vendo; já o que vê pensa que tudo o que vê é o que é, porque quando sabe que tudo o que vê não é tudo o que é, de alguma forma já está vendo o que não vê” (NISKIER, 2014). Enxergar o que não era visto confirma o quebrar de paradigmas e o revisar de pré-conceitos.

Mais tarde, Nilton Bonder (2011) publicou Segundas Intenções, que é, na opinião do rabino, um reverso da A Alma ImoralSegundas Intenções nos diz que não se deve pautar o comportamento apenas na transgressão, porque há o lado da preservação porque há algum motivo de o ser humano estar vestido. Pela linha da Análise do Discurso, são os “silêncios” do ser humano que são ditos e, em alguma situação da vida, são silenciados. Seria um grande desafio para Clarice Niskier adaptar essa obra para o teatro e mostrar a inexistência da transparência da linguagem e, consequentemente, da transparência do  ser humano, que é um ser histórico espontâneo e, ao mesmo tempo, censor.

Referências bibliográficas
ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Brasília: UnB, 1998.
BONDER, Nilton. A Alma Imoral. São Paulo: Rocco Digital, 2005. Acesso em 20 de abril de 2014.
----. Segundas Intenções. São Paulo: Rocco, 2011.
CHARAUDEAU, Patrick. Langage et discours. Paris: Hachette, 1983
MACINTYRE, Alasdair. Depois da virtude. São Paulo: EDUSC, 2001.
MAINGUENEAU, Dominique. Análise de textos de comunicação. São Paulo: Cortez, 2000.
NISKIER, Clarice. A Alma Imoral. Peça baseada na obra homônima de Nilton Bonder,  Teatro Glauce Rocha, Rio de Janeiro, 18 de abril de 2014.
PÊCHEUX, Michel. Semântica e discurso. São Paulo: Unicamp, 2009.