domingo, 21 de maio de 2023

PROPOSTA DE INTERPRETAÇÃO DO POEMA "CONTRARIEDADES", DE CESÁRIO VERDE

Por Humberto Silva de Lima (Doutor em Linguística Aplicada – UFRJ)

O poema “Contrariedades”, de Cesário Verde, pode ser considerado um texto argumentativo em que o poeta, na linguagem lírica, propõe que seja revista a ideia do que seja literatura. Mais especificamente: qual tipo de literatura é aceito pela sociedade, envolta por críticos literários que trabalham em diversas mídias (jornais e revistas, por exemplo)?

Se observarmos as primeiras estrofes do poema, poderemos notar um eu-lírico que se mantém intenso frente às produções literárias de sua época, mas ao mesmo tempo distenso a essas produções. Prova disso é que o eu-lírico ama a "acidez" e “os ângulos agudos” – há uma devoção à poesia do mais e à poesia do menos, o que justifica o título do poema, que é a união dos contrários. Pergunta-se até se o poeta convoca a estética barroca no poema em análise.

Na 5ª estrofe, o eu-lírico apresenta outra contrariedade: a das “raivas frias”. A proposta de hipálage aqui reúne a intensidade da raiva diante do comportamento dos críticos literários da época com a frieza que anula qualquer perspectiva de mudança de fato. As “raivas frias” são o inconformismo diante de um determinado status quo, mas que, pela frieza, tal inconformismo desvanece, porque o eu-lírico parece não ver nenhuma perspectiva de mudança.

Nesse âmbito, há a ideia de que o poeta se manifesta pela recusa de escrever nos gêneros prosaicos. O eu-lírico reconhece a possibilidade de fama daqueles que escrevem em prosa, mas ele parece ir na contramão desse pensamento, já que ao mesmo tempo não deseja a fama, mas reclama pela falta de reconhecimento de sua produção lírica – mais uma contrariedade – , situação essa que será mudada muito tempo depois (hoje a poesia de Cesário Verde é reconhecida, se considerarmos autor e eu-lírico como a mesma pessoa).   

À época da escrita do poema, o eu-lírico esperançou ter a sua produção poética reconhecida. Nessa esperança, ele não nega a existência de um mundo exterior que também precisa de atenção, como o caso da “secretária” (3ª estrofe) e o da “vizinha” (última estrofe). Isso mostra que o eu-lírico, que reclama pelo reconhecimento, não está alheio às questões do cotidiano, que também são matéria-prima para o seu fazer poético. Daí é que se nota a vontade do poeta: que o discurso da vida também entre em cena na poesia, atitude essa que, pelos críticos da época, não era tão valorizada, ao contrário do que queria o poeta.  

Para ler o poema, acesse https://www.citador.pt/poemas/contrariedades-cesario-verde (acesso em 21 de maio de 2023).

quinta-feira, 6 de abril de 2023

ESCRITA TERAPÊUTICA 13.04.23

 1. Ainda terei oportunidade de conduzir minha inteligência artificial. Gostaria de viajar não só nas palavras, mas também por meio de uma máquina que me conduzisse para onde eu desejasse estar. Eu tenho uma inteligência natural? Por que ela é artificial? Por que o meu sistema foi desinstalado? Que comandos devo seguir? Se a língua natural já não suporta as agruras de uma gramática escolar, por que estou na escola? 

2. Escolher sempre me fez refletir sobre aquilo que estaria abandonando. Posso fazer duas coisas ao mesmo tempo? A minha ubiquidade ainda não chegou, ainda não sou eterno. Ser imortal em uma academia não me dá um sentido marcante, somente palavras enfeitadas, dignas de uma literariedade questionável. A mente ultrapassa o devir sintático, mas esse devir não é sintático. É louco, é estranho, é plural. 

3. Meus pais gostariam que eu passasse a limpo a minha vida. 

4. Não consigo me ver fazendo trabalhos em um hospital. E um lugar de repouso, de tranquilidade. Qualquer coisa que me aconteça, estarão ali todos os profissionais para me darem medicamentos literários. E o que é literatura nesse contexto? Será que as palavras poderão ser condensadas em potes, seringas ou caixas? É claro que sim! Depende do mundo que você cria, que eu crio, que (n)a interação cria.  

ESCRITA TERAPÊUTICA 06.04.23

 1. A maior mudança na minha vida foi o casamento. É claro que nós pensamos sobre a roda viva que é a nossa vida. Tudo que nos cerca gera mudança. Algumas até podem ser grandiosas. Mas o casamento é a aquisição de constantes descobertas e responsabilidades, incomparáveis com as conquistas da vida de um solteiro. Não falo aqui do piegas social: casar para montar uma família. É mais do que isso: é a vontade de amar e ser amado. O casamento é o ápice das (des)aprendizagens. É o mundo em constante transformação. 

2. Minhas expectativas são poucas. No momento, penso que viver a sonhar é desaprender a viver. O sonho é importante ate um certo ponto. Não é possível viver (ou "morrer") idealizando o tempo todo. Vai haver aquela hora em que o disco vai terminar, e será necessário tocar outro disco. O Spotify parece infinito, mas o que se ouve não o é. Torna-se necessário descobrir e ver o mundo concreto, como ele é. Acho que estou sendo um pouco distópico, e estou. Os imperativos da vida estão aí para nos acordar, sem palavras enfeitadas, sem o "pão de ouro", como dizia Clarice Lispector. A vida é um bloco de notas. 

3. Sei que estou com raiva quando me miro no espelho fixamente. Olho para os meus resquícios da idade. O que aprendi? O que desaprendi? Que mudanças houve no meu comportamento? Em que me tornei? Essas perguntas podem gerar um conto interminável. Vai dar vontade de rasgá-lo, porque as vidas (a minha também) estão rasgadas. Quem nunca transgrediu por algo já esquecido? Ninguém fala de coisas ruins; só há fantasias. E por aqui termino a minha reflexão.   

 

sábado, 3 de abril de 2021

PROSA DE SEPARAÇÃO

 

PROSA DE SEPARAÇÃO

 

         Maria não estava em condições de consolar a cunhada naquele momento. As perturbações de Eduardo começaram com o novo emprego dele: problemas nas vendas, aumento de metas, pressão por todos os lados. Carlos já havia percebido que ajudar o marido de Isabel era, como dizem os populares, “rabo de foguete”. Realmente Eduardo não estava pronto.

            Os operários eram “livres” para vender sua força de trabalho em troca de um salário, e essa era a condição deles para a sobrevivência, já que não eram donos dos meios de produção. Trata-se do âmago do capitalismo utilitário: o homem se vê como uma mercadoria a ser vendida. Se está sobrando, melhor jogar fora de alguma forma.

            - Isa, você não está se sentindo bem hoje?

            Ela demora a responder porque seus pensamentos ainda não estão adequados ao sistema acelerado. O mundo não era assim ainda no casamento. O que será que aconteceu em tão pouco tempo?

            - Preciso pensar um pouco.

            - Mas você precisa reagir.

           - Por quê? Maria, eu preciso de tempo. Não quero estar como o meu marido está, num leito de hospital, entre a vida e a morte por causa de trabalho.

            - Mas o que você vai fazer?

           - Se não fosse essa pressão toda em cima da cabeça dele, certamente ele não estaria assim. Hoje o que eu vejo? Uma mercadoria jogada no conserto, porque o celular dele não para de tocar. São cobranças e mais cobranças.

            - Mas a vida é feita de cobranças.

            - Somos humanos, não máquinas.

Sempre somos bombardeados por compromissos: trabalhos, contas a pagar, família etc. Mas o que aconteceu com Eduardo não era ainda o que Isabel esperava. Ela o amava e não queria perdê-lo. Carlos pensava na vida feliz que eles levavam, mesmo com os problemas psicológicos de Eduardo. Não era nada grave, o problema é que Eduardo não aguentava pressão. Ninguém sabia que Eduardo tinha pressão alta, nem mesmo ele sabia. Era um problema silencioso que, para alguns médicos, é algo mais perigoso.

O mais (des)interessante é o fato de os colegas de trabalho de Eduardo viverem um mundo distópico diante dos dilemas familiares alheios. O espírito capitalista parece reinar diante da desgraça que paira sobre um casal.

- Infelizmente, não resistiu. Lamentamos muito.

O que foi um dia riso se tornou pranto. A calma se tornou vento. O amigo próximo se fez distante.